31 DE MARÇO E OS ADVOGADOS

                     por    Sérgio Roxo da Fonseca

SONY DSCParece até que foi ontem e lá se vão cinquenta anos entre os dias de hoje e os dias do golpe de 1964. Na noite de 31 de março, entre outras pessoas, Renato Nunes Maia, Ernani Parreira e eu assistíamos a uma conferência no Centro Médico de Ribeirão Preto quando chegou a notícia da insubordinação de militares mineiros contra o governo eleito.

Na manhã de 1º. de abril dirigi-me ao meu escritório. Logo que cheguei, soube da prisão do dr. Hollando Noir Tavela, antigo advogado trabalhista e veterano da Revolução Constitucionalista PaulIsta de 1932. A prisão teria como palco a calçada dos Correios. No momento da prisão, em plena rua, o advogado havia sido agredido por um investigador de polícia famoso pela sua truculência, conhecido como o “Coice de Mula”. Iniciavam-se as prisões de advogados que militavam em favor dos trabalhadores, como se a atividade profissional, em si, contivesse flagrância de prática criminosa. Logo depois sucedeu a prisão do dr. Said Hallah, outro advogado dedicado às causas trabalhistas.

Dirigi-me ao escritório do presidente da OAB, dr. Miguel Gonçalves da Silva, que imediatamente convocou uma reunião da entidade que se instalou no edifício do fórum. No início dos trabalhos, dois advogados propuseram que, antes do exame da legalidade daquelas prisões, seria necessário que a OAB se manifestasse, apoiando o golpe militar. Foi um escândalo. Os advogados repeliram a proposta, siderados pelo discurso emocionado e democrático do dr. Antônio de Pádua Lobosque.

Dali fomos para o gabinete do juiz diretor do fórum, dr. Wilson José de Mello. Pedimos sua intervenção para libertar os advogados.  Na nossa presença o juiz comunicou-se por telefone com o dr. Delegado de Polícia que lhe informou que aquelas e outras prisões estavam sendo realizadas por ordem direta do General Amauri Kruel, chefe do Exército em São Paulo. O juiz comunicou-nos que, não tendo poderes para corrigir tamanha ilegalidade, iria fechar o fórum. Pedimos que não o fizesse. Estavam presentes o dr. Miguel Gonçalves da Silva, dr. Antônio de Pádua Lobosque, dr. Romero Barbosa, dr. Wesson Alves Pinheiro e eu.

Os advogados trabalhistas passaram a ser presos em todo o Brasil como se tivessem cometido algum crime. Foi também preso em São Paulo o rieirãopretano dr. José Carlos Arouca, hoje desembargador aposentado, que também dedicou sua vida às causas trabalhistas.

É de alta relevância histórica registrar que até o mês anterior, o Brasil não reconhecia direitos em favor do trabalho rural. Naquele âmbito, os trabalhadores, quase escravos, somente passaram a ter direitos com a entrada em vigor do Estatuto do Trabalhador Rural, Lei 4.214, de 2 de março de 1963, promulgada por um presidente da República que, paradoxalmente, era fazendeiro e que seria imediatamente deposto em 1964, Jango Goulart. Ou seja, No Brasil, os trabalhadores rurais foram transformados em cidadãos apenas há 51 anos. Aqueles que direta ou indiretamente pugnaram por esta extensão do Estado de Direito foram imediatamente presos após a implantação do regime ditatorial.

Não só os advogados trabalhistas passaram a ser presos, é bem verdade. Inexistia um critério objetivo para as prisões.

Ainda foi preso o Padre Celso de Syllos, como também outro ribeirãopretano, o Tenente Albano Pinhão Lana, da Escola de Engenharia do Exército que havia se notabilizado pelo seu extraordinário conhecimento técnico.

Logo depois a brutalidade dessas prisões atingiu o médico pediatra Luiz Carlos Raya. Na “Paixão Segundo São Mateus”, de Bach, o cantor, que representa Pôncio Pilatos, indaga por que teria que ordenar a morte de Cristo. Os demais cantores respondem que Cristo merecia ser crucificado porque socorria os aflitos. Tenho pensado nisto quando eu me lembro dessas prisões antijurídicas: por que foram eles presos? A história repete o Evangelho: porque socorreram os necessitados.

A contar do dia 1º. De abril de 1964, as trevas derramaram-se sobre o Brasil, sobre Ribeirão Preto e sobre todos nós.