O ILUSTRE ESTRANGEIRO, NOSSO ILUSTRE CIDADÃO

3FERES SABINO*

A documentação que comprova a intervenção dos Estados Unidos, nos preparativos e no golpe de 1964, no Brasil, com a etiqueta de “secreta” ou “ultra – secreta”, encontra-se à disposição, no John F. Kennedy Library and Museum, em Boston, Massachusetts, e no National Security Archives (NARA), da The George Washington University, WASHINGTON D.C. Sua liberação aconteceu a partir de 1975.

Se, à época, em muitas cidades do país, aparecia pichada, nos muros, a frase – “BASTA DE INTERMEDIÁRIOS, LINCOLN GORDON PARA PRESIDENTE”, numa revelação do que o povo percebia, esse embaixador exerceu um papel fundamental, na articulação e desfecho do golpe, desde 20 de julho de 1962. Essa é a data da reunião acontecida, no Salão Oval da Casa Branca, com o Presidente Kennedy e assessores, da qual a prova é a sua gravação. O embaixador, desde aquele momento, foi um mestre em exagerar o perigo do comunismo, como assaltante do Brasil, o que historicamente se sabe, hoje, ser absolutamente impossível, à época.

O dinheiro correu à farta para desestabilizar o governo constitucional. No inicio, esse dinheiro vinha de empresas, depois da CIA, agencia de espionagem americana, e abasteceu o Instituto Brasileiro de Ação Democrática- IBAD, para corromper, como corrompeu, as eleições de 1962, já que financiou a campanha de mais de 200 deputados e alguns governadores. Por sua vez, o IPÊS – Instituto de Pesquisas Sociais, criado pelo Cel. Golbery, com o talento e a criatividade de sua diretoria-executiva, ocupada pelo então delegado de policia, Rubem Fonseca, tinha a função de ligar o foco da conspiração com a opinião pública.

O recente livro do jornalista Flávio Tavares, 1964 – O Golpe, com a epígrafe inicial de Bertold Brecht – “A verdade é a filha do tempo, não da autoridade” -, menciona a forma “subliminar, indireta mais concreta, da atuação do IPÊS, promovendo “…palestras, seminários, publica livros e folhetos, alimenta temas de telenovelas, cria boatos que se transformam em noticias

de jornais e patrocina programas de rádio”, sem exclusão de filmes cinematográficos, rádios, jornais de atualidade, exibidos nas fábricas, escolas, paroquias do interior e, mais do que tudo, nas próprias salas de cinema da cidade”.

No dia 29 de março de 1964, dentre tantas comunicações, que o embaixador enviou aos seus superiores, a desse dia, que é longa, fala sobre a destinação de armas, que “poderiam ser utilizadas por unidades paramilitares trabalhando com grupos militares democráticos ou por militares amigos contrários aos militares hostis, caso seja necessário”.

O embaixador, ainda, faz menção nada respeitosa ao povo brasileiro, dizendo — “Considerando a predileção dos brasileiros de se unir as causas vitoriosas, o sucesso inicial poderia ser chave …”. E sobre a presença, tida por necessária e dissuasória, dos navios de guerra norte-americanos, ele é categórico — “Compreendo bem o quão grave é uma decisão decorrente deste comprometimento, na contingencia de uma intervenção militar declarada aqui. Mas também devemos considerar seriamente a alternativa possível, que não estou prevendo, mas posso imaginar, como perigo real, da derrota da resistência democrática e a comunização do Brasil. Não pretendíamos que as operações navais fossem secretas, e manobras abertas no Atlântico Sul poderiam ter uma influencia decisiva”.

Lincoln Gordon ajudou substancialmente a golpear a ordem democrática do Brasil, contaminada pelos preconceitos e ódios gerados pela ideologia da Guerra Fria, criadora da divisão do mundo em dois hemisférios, ideológicos, econômicos e políticos. Ele serviu, fiel e competentemente, os interesses estratégicos de seu país, à custa do nosso.

Nossa Câmara Municipal concedeu pela Lei nº 1569/65 do dia 20 de abril de 1965, o titulo de “Cidadão Ribeirãopretano” ao embaixador Lincoln Gordon, o “herói” estrangeiro, que teria prestigiado “o nosso Município, através da Aliança para o Progresso”, programa destinado a acelerar o desenvolvimento econômico e social da América latina, como forma de combater o comunismo. E, para participarem das festividades de recepção ao insigne Embaixador, que veio em visita oficial, a Câmara Municipal pelo Ato nº 50/65, tal como fizera o Chefe do Poder Executivo em relação a seus servidores, decretou “ponto facultativo nas (suas) repartições…”

Em 1998, o professor e brilhante jornalista Divo Marino publicou o livro – “ORQUIDEAS PARA LINCOLN GORDON”, que é o seu depoimento sobre o dia 29 de abril de 1965, dia da entrega do titulo, lembrando que no trajeto, entre o aeroporto e o centro da cidade, os militantes de esquerda picharam os muros, protestando contra essa visita e a homenagem. Orquídeas, porque era essa espécie de flor que enfeitava o recinto da Câmara Municipal de Ribeirão Preto, no dia da solenidade.

O “confuso contexto ideológico” da época tinha reflexo na imprensa local. A posição progressista era representada pelo “Diário de Noticias”, da Curia Metropolitana, dirigido pelo Pe. Celso Ybson de Syllos, pelo “O Diário da Manha” sob a direção de Antonio Carlos Pinho Santana, e pelo jornal “A Palavra” sob a responsabilidade editorial de Divo Marinho. A linha conservadora era do jornal “A Cidade”.

Esse episódio histórico revela a força impositiva da doutrina da guerra fria, que dividiu o mundo em dois blocos, capitalista e comunista. E com esse pano de fundo ideológico, o livro registra o que foi a luta nacionalista e reformista, na cidade e na região, especialmente em prol da organização dos trabalhadores rurais.

 

advogadoferessabino.wordpress.com